Estreiando com Charlie Harper, um personagem de humor

Uma das minhas diversões é assistir séries antigas na televisão.
 
Não é que eu não goste das novas. Até gosto de algumas. Mas o fato é que as séries de televisão de hoje em dia foram "higienizadas". Nelas todos falam um vocabulário que é considerado socialmente aceitável, ou seja, só se ouve o "politicamentecorretês", esse idioma que elimina as emoções e substitui o que se quer dizer pelo que se deve (ou pode) dizer.
 
Desnecessário dizer que o "politicamentecorretês" é inimigo da atividade psicanalítica. Não há como fazer uma livre associação, por exemplo, com uma pessoa que sempre para para pensar se deve dizer isto ou aquilo, ou se deve trocar esta palavra por aquela. Isso é justamente a antítese de livre associação!

Enquanto pensava no que escrever neste artigo de abertura do blog, no qual eu realmente pretendia inaugurar as análises de personagens fictícios, comecei a assistir (novamente) a primeira temporada de "Two and a Half Men", uma série de humor que começou em 2003, ou seja, que já tem 21 anos.

Acontece que esta série tem algumas características interessantes, do ponto de vista psicanalítico. Mesmo sendo uma série de humor, no melhor modelo das "soap operas" da televisão dos Estados Unidos, ela apresenta vários conflitos de personalidade, sendo o mais óbvio o dos irmãos Charlie e Alan (nterpretado pelo ator Jon Cryer), completamente diferentes. É deste contraste entre os irmãos que a série deriva boa parte do seu humor.

Prime Video: Two and a Half Men: The Complete First Season

O personagem Charlie Harper, interpretado por Charlie Sheen, é um dos mais icônicos da televisão contemporânea. Charlie é um compositor de jingles bem-sucedido, mas também é conhecido por seu estilo de vida hedonista, marcado por festas, bebidas e relacionamentos superficiais.

Charlie Harper é um exemplo clássico de uma personalidade dominada pelo id, a parte da psique que busca prazer imediato e gratificação. Seu estilo de vida hedonista, sua incapacidade de manter relacionamentos estáveis e sua busca constante por novas conquistas são indicadores dessa dominância.
 
O ego de Charlie, responsável por mediar as demandas do id com a realidade, muitas vezes falha em controlá-lo, levando a comportamentos autodestrutivos, como o abuso da bebida. São raras as cenas em que ele aparece sem um copo na mão.
 
O superego de Charlie, que representa a moralidade e os padrões éticos internalizados, parece subdesenvolvido, o que é evidente em sua falta de remorso ou culpa por suas ações. Charlie usa as mulheres para sua divesão sem o menor pudor, fugindo sistematicamente de relacionamentos duradouros. E elas adoram isso!

A série desmascara de uma forma muito interessante a falsa noção de que a vida é um jogo onde os homens querem conquistar as mulheres e usá-las como objetos sexuais, enquanto as mulheres são meras vítimas desse jogo masculino. As parceiras de Charlie Harper são, em sua maioria, mulheres que buscam o mesmo que ele: prazer sem compromisso. Elas não são vítimas do jogo de conquista dele, mas agentes desse jogo e tão interessadas no próprio prazer quanto o próprio Charlie.

Como contraste para isso, temos a personagem Rose, interpretada pela atriz Melanie Lynskey, que depois de dormir uma noite com Charlie, fica obcecada por ele, ao ponto de invadir a casa dele pelo deck que dá para a praia para ficar perto dele.

Outro ponto marcante é a relação conturbada entre Charlie e sua mãe, Evelyn, interpretada pela atriz Holland Taylor. Charlie vê a mãe como uma megera e até a responsabiliza pela morte do pai. No entanto, percebe-se que ele reproduz exatamente o comportamento da mãe, que é também promíscua e extremamente sarcástica. Tanto Charlie quanto Evelyn mostram um constante desprezo pelas atitudes de Alan.
 
A relação disfuncional de Charlie com sua mãe, Evelyn, pode ser vista através da lente do Complexo de Édipo. Evelyn é controladora e crítica, e Charlie muitas vezes busca mulheres que compartilham essas características, sugerindo uma tentativa inconsciente de resolver conflitos não resolvidos com a mãe.
 
Os comportamentos autodestrutivos de Charlie, como o consumo excessivo de álcool e a promiscuidade, podem ser interpretados como expressões da pulsão de morte, um conceito freudiano que sugere uma tendência inata para a autodestruição e o retorno ao estado inorgânico. Charlie parece estar em uma busca constante de prazer para evitar a dor, mas essa busca frequentemente leva a consequências negativas, criando um ciclo de autodestruição, que culmina com a morte dele no início da nona temporada.
 
Embora sabendo que a morte de Charlie deu-se às constantes brigas entre Charlie Sheen e a produção da série, gosto de pensar que a Charlie foi dado um fim digno de sua vida. Melhor Charlie morto do que domesticado, já que ele havia casado com Rose, sua antiga stalker.
 
Usando um termo cunhado pelo psicólogo hispano-cubano Myra & Lopez, talvez Charlie Harper seja um excelente exemplo de pseudo-ajuste. Vítima de uma infância infeliz junto à mãe dominadora e carente de uma figura paterna, Charlie Harper torna-se um hedonista como uma forma de fugir da dor. Inseguro quanto à sua masculinidade, enche sua vida de mulheres sem apegar-se a nenhuma.

Afinal de contas, um interminável rodízio de mulheres bonitas na cama pode não ser a felicidade, mas é uma forma muito boa de ser infeliz. Enquanto um homem não acha a mulher certa, não é exatamente ruim que se divirta muito com as erradas. E sem culpa, desde que se importe também com o prazer delas!

Um brinde ao Charlie Harper, que nos proporcionou o artigo de abertura deste blog, além de muita diversão na série.

Comments

Popular posts from this blog

Pasternak, Orsi e a obsessão em atacar a Psicanálise

Édipo para leigos