Pasternak, Orsi e a obsessão em atacar a Psicanálise

Natalia Pasternak era minha amiga no LinkedIn. Começamos nossa amizade quando ela fez alguns comentários duros contra o Jair Bolsonaro na época da pandemia, depois que ele afirmou que estava sentado sobre e verba para comprar vacinas e ela o mandou tirar o traseiro da verba e efetivamente fazer essa aquisição, para salvar vidas.

Ela e eu compartilhamos o mesmo amor pela Ciência. Sabemos que a Ciência não é uma interpretação perfeita da realidade, mas ao menos se esforça para ser. E que desenvolveu, com o passar do séculos, mecanismos de verificação que dificultam erros e fraudes.

Mantivemos essa amizade distante por mais de dois anos, até que ela e o esposo, Carlos Orsi, publicaram o livro "QUE BOBAGEM", onde colocam a Psicanálise no rol das pseudociências, equiparando-a com a Astrologia e com a infame Constelação Familiar, sobre a qual falarei em outro artigo.

 


Curiosamente, não fui eu que rompi a nossa amizade por sentir-me ofendido, como psicanalista, com a comparação. Foi ela quem bloqueou-me, justamente porque recusa-se a ser a cientista que tenta parecer para o mundo.

Permitam-me contar um pouco da história dessa desavença, como preâmbulo para o que tenho a dizer.

Depois da publicação do livro, tanto psicanalistas quanto seus pacientes caíram matando sobre a Natalia no LinkedIn e em outras redes sociais. Quanto aos psicanalistas, alguém poderia até pensar que se tratava de uma questão de interesse. Afinal de contas, o livro sujava a água da qual eles bebiam. Mas a reação dos pacientes foi bastante significativa. Pessoas que conhecem os beneficios da Psicanálise em suas vidas saíram em defesa desta modalidade de psicoterapia aos milhares.

Eu sempre fico do lado cauteloso e pacificador dos debates. Em lugar de aborrecer-me com as comparações do livro, minha primeira reação foi ouvir da própria Natalia sobre o assunto, procurando entender o que havia motivado tais comparações. Como cientista, dos de verdade, sempre guardo em minha mente uma "zona de dúvida" sobre tudo. Ciência é quase um sinônimo de ceticismo, e o ceticismo nos ensina a desconfiar de tudo, inclusive (e principalmente) das nossas mais profundas convicções.

"Será", pensei eu, "que por duas décadas iludi-me com a Psicanálise? Será que preciso rever todos os meus conceitos sobre o assunto? Vou tentar entender o motivo dessas críticas e saber se estão corretas."

Foi imbuído deste espírito que fui, com a franqueza de um amigo, procurar a Natalia para conversar sobre o assunto. Fui desarmado, pronto a ouvir tudo que ela tinha a dizer, refletir e argumentar com racionalidade. Porque é assim que se faz Ciência.

Devo esclarecer que sou um apreciador da Dialética de Hegel, pois esta expressa para mais pura forma de produção de conhecimento. Para Hegel, toda tese, seja ela qual for, desperta oposição. Essa oposição se dá na forma de uma antítese, ou seja, de uma negação da tese. Imediatamente, tese e antítese entram em um processo de diálogo (o termo "dialética" vem daí...) e com o passar do tempo esse diálogo produz uma síntese, que é uma acomodação entre os aspectos da tese e de sua antítese. Essa síntese, por sua vez, constitui uma nova tese, que dá início a um novo ciclo.

Para entendermos melhor como isso acontece, vejamos o caso prático do Liberalismo, do Comunismo e da Social Democracia. As teorias focadas no Liberalismo como modo de produção e modelo econômico começam no século XVIII, com Adam Smith (1723-1790). Podemos pensar na obra de Smith como sendo uma tese que inicia um ciclo hegeliano. Essa tese é fortemente contestada no século XIX, principalmente pela obra de Karl Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). Podemos dizer que essa obra é a antítese ao pensamento liberal de Adam Smith. Tese e antítese dialogam, de modo teórico (na Academia) e prático (nas experiências socalistas) durante toda a segunda metade do século XIX e nas primeiras sete décadas do século XX, até que surge, em meados dos anos 70 do século XX, a tese da Social Democracia, um modo de produção e modelo econômico e político que se propõe a conciliar as teses liberais com as teses socialistas/comunistas. Esta é a síntese de que nos fala Hegel. E quando vemos hoje as críticas ao modelo social democrata, o que estamos vendo é que essa síntese agora é a tese em debate, da qual surgirão uma nova antítese e uma nova síntese em momento oportuno.

Acredito que desse debate, desse diálogo, é que surge a verdadeira Ciência, o verdadeiro conhecimento. Nada de dogmatismos! Vamos sentar e conversar, no âmbito do pensamento filosófico. Vamos observar os modelos existentes ou criar simulações computacionais. Vamos analisar dados e ver onde podemos chegar com um debate aberto e franco sobre eles e sobre como foram obtidos.

Foi para isso que procurei a Natalia em mensagem privada no LinkedIn, como tantas vezes havíamos conversado antes. Ela se queixou, muito corretamente, que as pessoas a estavam atacando sem ter lido seu livro. Compreendo isso perfeitamente, porque sei que estamos no que costumo chamar de "Era dos Especialistas de Manchte", na qual as pessoas leem só as chamdas das notícias e saem opinando como se soubessem tudo sobre o assunto. 

Tratei então de adquirir o livro e de lê-lo antes de voltar a procurar a Natalia para tratar do tema. E quando li "QUE BOBAGEM" a minha decepção foi grande.

Conheço pouco do Carlos Orsi, esposo da Natalie e co-autor do livro. Mas esperava muito mais da Natalia do que o que li naquela obra. O livro é monótono, mau escrito e em alguns trechos me pareceu sentir o toque do então recém-lançado ChatGPT. Aquele tom distante de uma LLM (Large Language Model, que é o termo certo para descrever o ChatGPT, não "inteligência artificial"). Com minha vasta e prodigiosa memória, notei ainda na primeira leitura (sempre leio mais de uma vez para estudar a fundo alguma coisa...) algumas informações erradas e até alguns erros de português bastante primários.

Notem que não estou dizendo tudo isso como uma vingança contra as afirmações de "QUE BOBAGEM" em relação à Psicanálise. É que o livro é ruim mesmo! 

Ainda assim, depois de ler o livro duas vezes, fazer anotações sobre as afirmações grosseiramente erradas ou ligeiramente equivocadas contra a Psicanálise, voltei a procurar a Natalia. Agora eu estava munido com o conhecimento do livro e ela não podia mais acusar-me de estar criticando sem ler. 

"Agora", pensei eu, "ela vai aceitar um debate aberto."

Novamente no chat privado do LinkedIn, convidei Natalia Pasternak e Carlos Orsi para um "debate de casais". A minha esposa (na ocasião, hoje ex-esposa), que também é psicanalista e havia lido o livro junto comigo, e eu estávamos convidando Natalia e seu esposo (co-autor do livro) para debater o tema da Psicanálise em uma live no meu canal no Youtube

Fiquei surpreso com a recusa da Natalia. Mais ainda, com o tom da mesma. Porque até então ela havia tentado passar pela cientista perfeita, mas agora dizia que "não tinha interesse em debater o conteúdo do livro". Ora, uma pessoa de mentalidade realmente científica está sempre disposta a debater suas afirmações. Quem não está disposto a debater o que afirma são os dogmáticos, aqueles que acham que suas opiniões são leis universais. Ou os narcisistas, que se consideram sempre o centro do universo e mais certos que todos os outros.

Natalia Pasternak não apenas se recusou a debater. Ela me bloqueou quando deixei claro que havia lido o livro de cabo a rabo duas vezes e feito anotações para questionar algumas afirmações erradas sobre a Psicanálise. 

Essa atitude deixou algumas coisas muito claras para mim:

  • Natalia Pasternak não é a cientista que afirma ser. Se fosse, teria minimamente mostrado algum respeito pelo livre debate acadêmico. Afinal, não se tratava do convite de um leigo desinformado, mas de  alguém com uma titulação acadêmica igual ou superior à dela. Além disso, mostrei respeito por ela ao adquirir o livro e tratar de lê-lo antes de debater, como ela clamava ser necessário.
  • Natalia Pasternak nem mesmo é intelectualmente honesta. Qualquer pessoa que faz afirmações a torto e a direito sem aceitar debater o que afirma está mostrando um elevado grau de desonestidade intelectual. Algo muito parecido com Pablo Marçal acusando todos os seus adversários de cheirarem cocaína apenas para aparecer, sem qualquer fundamento ou prova, só para aparecer.
  • Natalia Pasternak e Carlos Orsi colocaram a Psicanálise no livro apenas porque sabiam que despertariam uma grande polêmica, que aumentaria as vendas. Os dois entendem muito pouco do assunto, como mostram as afirmações desencontradas que fazem no livro. O que eles sabiam mesmo era que falar mal de Astrologia, Florais de Bach e outras tolices seria apenas "mais do mesmo" e não despertaria atenção alguma. Mas falar mal da Psicanálise despertaria a fúria de milhões e atrairia a atenção do público para o livro deles.
  • Aquela hipótese de parte do livro ser produto do ChatGPT foi reforçada em minha mente. A recusa dela em debater pode ter sido simplesmente o medo de não saber o que dizer, por não ter escrito o livro de fato.

Mas tudo até aqui foi apenas o preâmbulo do que tenho a dizer sobre Pasternak e Orsi.

Os dois fundaram uma revista eletrônica chamada "QUESTÃO DE CIÊNCIA" e eu assino a newsletter dessa revista. Isso mesmo... Mantenha os amigos perto, os inimigos mais perto ainda!

Acompanho com interesse os artigos dessa publicação que, na verdade não passa de um blog disfarçado de revista acadêmica. Não há comissão editorial, não há 'peer review', não há nada que a caracterize, de fato, como revista científica. Exceto, é claro, a ideia da Pasternak de que ela é cientista mesmo, coisa que hoje questiono, em função dos eventos acima citados.

Sempre que recebo notificações de artigos novos, dou uma olhada para saber do que se trata. Não é Ciência de verdade o que publicam lá, mas nem só o que é Ciência me interessa, afinal de contas sou um ser humano como outro qualquer.

Acontece que notei que quase todos os artigos que publicam lá são destinados a combater a Psicanálise. E fico em dúvida sobre a motivação para isso.

A primeira coisa que me ocorreu é que o debate inicial em torno de "QUE BOBAGEM" já acabou e as vendas devem ter diminuído significativamente. Assim, os ataques de Pasternak e Orsi (et alli) na tal "revista científica" seriam apenas uma forma de marketing, tentando reacender a polêmica para reacender as vendas. Nada contra isso. Como escritor, sei o quanto é difícil vender livros no Brasil. E olha que dois dos meus três livros estão esgotados, enquanto "QUE BOBAGEM", mesmo com toda a polêmica, não vendeu nem metade da tiragem inicial, segundo uma fonte confiável de dentro da editora deles.

Penso, porém, que há mais que apenas isso. O óbvio ranço dos ataques me deixa com uma pulga psicanalítica atrás da orelha!

Será que esses dois, em conjunto ou isoladamente, sofreram algum trauma com Psicanálise?

Sim, eu sei que essa especulação pode ser acusada de ser "malevolamente freudiana". Freud foi acusado por seus detratores dessa dubiedade, porque se você concordava com a Psicanálise, tudo bem para ele. Senão ele alegaria que você estava em uma negação e a Psicanálise estava certa de qualquer modo!

Não, eu não pretendo usar uma estratégia tão grosseira. Aliás, o próprio Freud nunca fez isso explicitamente, como querem insinuar seus detratores. Isso não passa de mais um mito sobre ele, como aquela coisa de "há momentos em que um charuto é apenas um charuto". 

A constância de artigos atacando a Psicanálise na tal "revista científica" de Pasternak e Orsi, porém, é realmente algo digno de nota. Ela revela uma obsessão quase patológica.

Patológica ao ponto de escreverem coisas totalmente sem sentido. E este, finalmente, é o ponto ao qual eu queria chegar.

Vou listar aqui apenas quatro dos muitos pontos absurdos dos diversos artigos que li na "Questão de Ciência". Pontos que mostram que os editores da mesma a obsessão em atacar a Psicanálise superou a lógica e a honestidade intelectual, como qualquer pessoa minimamente sensata poderá notar.

  • Atacar a pessoa de Sigmund Freud não invalidade a terapia psicanalítica. Sim, é isso mesmo. Um dos artigos que li sobre o tema procurava desacreditar a Psicanálise falando mal de Freud! Claro que é uma estratégia tosca e ineficaz, mas está lá de qualquer modo. Acontece que se essa estratégia fosse mesmo eficaz, metade do edifício da Ciência desabaria. Talvez até todo!
    • Isaac Newton já foi acusado por historiadores de ter exercido o papel de Lorde Executor da coroa britânica. Pior que isso, acusam-no de ter usado os poderes deste cargo para livrar-se de inimigos pessoais. O que faremos se isso for verdade? Passaremos a voar porque a gravidade ficará anulada pelo mau caráter daquele que lhe deu formulação científica?
    • Uma assistente de pesquisa de Albert Einstein descreve-o como "praticamente tarado" e diz que ele muitas vezes estava nu por baixo do seu sobretudo e que demandava sexo de suas assistentes, coisa que hoje seria vista como assédio ou mesmo como estupro. Será que isso invalida as suas duas Teorias da Relatividade (sim, são duas... a Geral e a Restrita)?
    • Richard Feymann, prêmio Nobel de Física e reputadamente um dos grandes gênios do século XX, dizia abertamente que embriagava suas estudantes para fazer sexo. Será que isso invalida seus trabalhos?
    • De uma forma genérica, podemos nos perguntar  se o caráter de um pesquisador invalida suas pesquisas. Se a resposta for "sim", teremos de rasgar a maioria dos livros de Ciência. Se estendermos isso para os livros didáticos, em uma geração a civilização humana regridirá para as cavernas.
  • A Psicanálise não parou em Freud. Atacar Freud para atacar a Psicanálise como um todo é contraproducente de outra forma. Porque a Psicanálise não parou em Freud, mas vem sendo debatida e ampliada continuamente por centenas, milhares de pensadores e pesquisadores, muitos dos quais de reputação ilibada, como Jacques Lacan. Atacar Freud é ineficiente, porque para destruir a Psicanálise seria necessário destruir também as reputações e teorias de todos os psicanalistas que vieram depois dele e que o contestaram e/ou ampliaram suas teses.
  • Para ser uma pseudociência, é preciso antes afirmar-se como ciencia. Se coletarmos as opiniões de todos os psicanalistas vivos hoje, bem como recuperarmos os escritos de todos, de Freud até hoje, veremos que são poucos os que reivindicam esse status de ciência para a Psicanálise. Por nós psicanalistas ela é mais vista como MÉTODO TERAPÊUTICO BASEADO EM EVIDÊNCIAS EMPÍRICAS. De fato, qualquer psicanalista com uma boa formação reconhecerá imediatamente que faltam à Psicanálise vários requisitos para que seja considerada uma ciência. Aos interessados em conhecer esses requisitos, sugiro a obra de Imre Lakatos (1922-1974) sobre Metodologia Científica, que é de fácil leitura e muito esclarecedora sobre esse tema. Aliás, o fato de não ser classificada como ciência não é um demérito para a Psicanálise. O cházinho da vovó cura aquela dor de barriga, mesmo que a "véia" não tenha apresentado sua receita em uma tese, como "requisito para a obtenção dos créditos necessários para a obtenção do grau de doutora". É bom lembrar também que gênios da Ciência, como Newton e Leibnitz, dedicaram seu tempo a estudos de pseudociências como a Alquimia  e a Teologia. Devemos rasgar suas obras por isso?  
  • Id, Ego e Superego são apenas um modelo possível. Aqueles que, como eu, se dedicam não apenas ao estudo das coisas, mas também de sua história, saberão que antes de chegar ao seu modelo de Id, Ego e Superego, Freud concebeu diversos outros modelos para tentar explicar a Psiquê humana. Um deles, ainda muito voltado para suas concepções como médico neurologista, era baseado em uma possível especialização dos neurônios, que segundo eu ela teriam várias funções relacionadas à armazenagem de memórias, entre outras coisas. Qualquer um que tenha lido, com atenção, a obra de Karl Popper (1902-1994), está familiarizado com a ideia de que "um modelo é apenas um modelo", ou seja, que o modelo usado para explicar um fenômeno não reflete necessariamente o objeto real que ele está modelando. Com isso quero dizer que a modelagem de Freud de Id, Ego e Superego não quer dizer que em nosso cérebro essas três entidades existam como "seres reais", como parece pensar o autor de um artigo da "revista científica" de Pasternak e Orsi. Aliás, como eles próprios parecem pensar, segundo seu livro "QUE BOBAGEM", onde chegam a falar que não há evidências de que essas entidades existam de fato em nossa mente. Não tive a oportunidade de conversar com Sigmund Freud, que morreu quando a minha mãe tinha apenas um ano de idade, mas li sua obra e por isso o julgo inteligente demais para cometer um erro tão tosco quanto o de acreditar que Id, Ego e Superego sejam como criaturinhas vivendo dentro de nossos crânios. Freud era inteligente o bastante para entender que o que ele criou foi um modelo para a mente. Não se pode dizer o mesmo de Natalia Pasternak, Carlos Orsi e seus colaboradores.

Bem, creio que já me estendi demais. Não quero dar mais relevância para o que não deveria ter nenhuma. Em uma sociedade mais culta, mas sofisticada e mais bem informada, o livro "QUE BOBAGEM" teria vendido apenas entre os familiares de Pasternak e Orsi. Na sociedade medíocre em que estamos, ficou semanas na lista dos mais vendidos. Afinal, um bom marketing é capaz de vende qualquer coisa, como bem sabem os que comercializam esterco. E esterco tem o mérito de servir como adubo. "QUE BOBAGEM" nem esse mérito tem.


Edvaldo Silva de Almeida Jr., PhD

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