Lacan, Žižek e Chuck Norris

Slavoj Žižek e eu temos muitas coisas em comum.

Ambos somos fascinados pela obra de Jacques Lacan, ambos somos fascinados pela obra de Karl Marx e ambos gostamos muito de cinema.


A interpretação de Žižek para o Real lacaniano é soberba. O Real, em Lacan, não tem qualquer conexão com a Realidade. Trata-se apenas do espaço das coisas que não podem ser representadas no universo do Simbólico.

Na verdade, o Real lacaniano pode, muitas vezes, ser usado como uma forma de ocultar a Realidade.

É aí que entra o Chuck Norris!

No final dos anos 80 e começo dos anos 90, Chuck Norris fez uma série de filmes intitulada "Força Delta". Os enredos dos filmes da série eram o que os músicos chamariam de "variações sobre o mesmo tema".

Chuck Norris era um coronel que esteve no Vietnã, comandando um time das Forças Especiais, uma espécie de tropa de elite sem o Capitão Nascimento. Uma década depois de acabada a Guerra do Vietnã, com o fiasco dos estadunidenses sendo expulsos daquele país com o rabo entre as pernas, o coronel voltava repetidamente àquele país asiático para resgatar soldados dos EUA que ainda estavam prisioneiros, vivendo em condições terríveis em campos de concentração.

Os objetivos da série eram claros. Em primeiro lugar, apresentar os comunistas do Vietnã como eternos malvados que prendiam em campos de concentração os "Combatentes da Liberdade", que é como os estadunidenses chamam os soldados que enviam para dominar e oprimir outros povos.


Uma pausa para uma pergunta do falecido comediante George Carlin...


O segundo objetivo dos filmes era dar ao público dos EUA uma realidade alternativa, onde um único estadunidense era capaz de matar centenas, até milhares, de vietnamitas de uma só vez.

Incapazes de lidar com o Real que foi a derrota para um país que consideravam insignificante, os estadunidenses passaram a assistir em massa a filmes como os da série "Força Delta", ou as sequências da série "Rambo", do Sylvester Stalone, como uma forma de criar uma Realidade alternativa.

Em suma, como não podiam representar simbolicamente, como povo, a derrota para os vietnamitas, os estudidenses passaram fugir do Real lacaniano desta derrota através da construção de uma nova Realidade.

Se pensarmos bem, isso pode ter sido o início da era da Pós-Verdade na qual vivemos!


Há um outro ponto interessante nas considerações de Žižek sobre a obra de Lacan, quando pensamos na derrota dos EUA para o Vietnã.

Žižek fala, em seu livro "COMO LER LACAN", sobre o "sujeito passivo". Vou dar um bom exemplo do que é isso.

Eu adoro assistir séries sobre restaurações. Umas poucas vezes na vida restaurei violões quebrados e móveis antigos em estado de decomposição, mas o tempo dedicado aos estudos e aos meus pacientes acabaram sufocando essas atividades, que me davam muito prazer.

Agora, como forma de compensar-me pela perda desse prazer, eu assisto séries sobre restauração na Netflix e na Amazon Prime. E quando estou assistindo, não apenas vejo aquelas pessoas fazendo restaurações, mas sinto como se eu as estivesse fazendo.

Esse é o "sujeito passivo" lacaniano, segundo Žižek.

Se pensarmos bem, cada estadunidense que esteve no Vietnã, ou cada filho que perdeu seu pai naquela guerra estúpida, eram sujeitos passivos nos filmes de Norris e Stalone. Eles não apenas viam aqueles heróis dos EUA matando vietnamitas ás centenas, mas eles ERAM aqueles heróis, eles matavam aqueles vietnamitas... Pelo menos no campo do Imaginário, outro elemento da "trindade" lacaniana.

E sendo esses sujeitos passivos, eles conseguiam finalmente simbolizar o que aconteceu na Guerra do Vietnã, escapando da opressão do Real lacaniano através da Realidade alternativa.

 

Para dar mais solidez às deferenças entre o Real lacaniano e a Realidade, invoco aqui essa matéria do Los Angeles Times:


Na Realidade, que nada tem a ver com o Real lacaniano, os estadunidenses não estão voltando ao Vietnã para salvar soldados detidos ilegalmente em campos de concentração. Eles estão voltando para o Vietnã para conseguir, no regime comunista que tanto temiam e odiavam, as condições de vida e os tratamentos de saúde que o falido sistema capitalista dos EUA não conseguem dar a eles.

Ponto para o comunismo vietnamita. E ponto para nós, Žižek!

 

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